Política
Eleições
2014
A semântica das urnas
Você
é um marciano recém-chegado? Descubra aqui como separar o joio do trigo – ou
entender o que é verdade e o que é só interesse no calor da temporada eleitoral
por Nirlando Beirão — publicado 28/09/2014
07:48
Chico Bela
Desde a primeira
eleição de lula, em 2002, o discurso político ganhou um léxico próprio. Vários
conceitos dos tempos da Guerra Fria foram reciclados, outros claramente copiam
a retórica da neodireita norte-americana reunida no Tea Party. O objetivo central
dessa linguagem é tirar o PT do poder a qualquer custo. A cada campanha, o
rosário de termos se renova, embora certas palavras nunca percam sua
importância (corrupção, aparelhamento do Estado etc.). A seguir, como
distinguir no palavrório que aquece as campanhas a verdade factual do discurso
criado para escamotear os interesses, a fraude e a má-fé.Alternância do poder
• Você passa a
defendê-la com convicção religiosa, quando o partido do qual é inimigo
permanece no poder, ao longo de reeleições sucessivas, ainda que avalizadas
democraticamente pelo voto. O primeiro passo é atacar a reeleição, instituída,
aliás, criada de uma maneira bem marota pelo ex-presidente Fernando Henrique ,
na esteira do projeto de 20 anos de poder do PSDB e à base da compra de votos
no Parlamento. Um golpe constitucional sem nenhuma sutileza democrática a
beneficiar o mandatário em exercício, o qual, por mera coincidência, você
apoia. Alternância só é necessária quando se está fora do poder. Caso
contrário, atrapalha o aperfeiçoamento da democracia. Em São Paulo, ela é
especialmente execrada. Os paulistas preferem perpetuar um mesmo grupo
político, enquanto bradam contra o risco de uma ditadura em nível federal.
Aparelhamento do
Estado
• Quem aparelha o
Estado são os adversários. Duvida? Basta ler jornais e revistas, sempre muito
zelosos em fiscalizar os adversários, ainda que só a eles, e acusar o partido
no poder, desde que não seja o de sua preferência, de “aparelhar o Estado”.
Isso significa, basicamente, o seguinte: o partido no poder nomeia para os
cargos de confiança pessoas... de sua confiança. Você reclama, iracundo: o
Estado faz a festa da “companheirada”. A imprensa partidariamente engajada
trata de denunciar a “farra das nomeações”. Dá para imaginar a perplexidade do
leitor: o que queriam os jornalões? Que o partido no poder nomeasse
adversários?
A vigilância ética é
de mão única: se um presidente da República simpático a você nomeia para um
importante cargo na área de energia um genro, não é por nada, seus maldosos,
apenas uma coincidência. Quando o partido que você apoia aparelha o Estado com
a sua companheirada, tenha certeza: os apadrinhados são gente de bem, de
notório saber e reputação ilibada. Se aquele diretor da estatal nomeado por
você ou pelos seus for pego mais tarde com a mão na botija, é um caso de
cooptação estimulado pelo clima corrupto instaurado por seus adversários.
Bolivariano
• Se você se
interessa pela sorte dos pobres, excluídos e vítimas de discriminação, a ponto
de criar programas sociais compensatórios de emergência, é bolivariano. Se a
política externa que você defende não se rebaixa aos ditames da Casa Branca,
busca parcerias com nações fora da órbita imperial do dólar e do euro e chega
ao cúmulo de lançar as bases de um FMI dos emergentes, trata-se de “ilusão
bolivariana”. Bolivariano é o neocomunista. O comunismo morreu, mas o
anticomunismo continua a gerar bons negócios. Embora o termo seja démodé,
um bolivariano pode ser chamado de populista, na falta de termo melhor.
Antônimo: Racionais. São os almofadinhas da Escola de Chicago e da PUC-Rio que
não ligam para a sorte da maioria, mas se apegam fervorosamente a crenças que a
realidade teima em desmentir. Estado mínimo, por exemplo.
Choque de gestão
• Significa cortar
salários, promover demissões em massa e diminuir o investimento público, com
base na teoria de que Estado mínimo é Estado eficiente. Faz muito sucesso entre
aqueles que não sofrem os seus efeitos imediatos. No choque de gestão não cabem
as migalhas assistencialistas do Bolsa Família, um jeito de perpetuar a
miséria, não de reduzi-la, conforme a tese. Recomenda-se, porém, não ser
explícito. Melhor dizer que os programas sociais “serão aperfeiçoados”.
Deus
Entidade abstrata,
costuma irromper muito concretamente na cena política em anos eleitorais. Todo
mundo simula acreditar em Deus, em especial quem não crê. A história da
humanidade mostra, porém, que piores costumam ser aqueles que acreditam.
Relegar a fixação da meta de inflação e a taxa de juros às interpretações de um
I Ching errático que tenha na Bíblia uma plataforma não parece combinar com as
práticas de um Estado leigo e não confessional. Bíblia na qual se confia
cegamente, mesmo quando se afronta o conhecimento adquirido pelos seres humanos
ao longo dos tempos. Ela é sempre propícia a uma leitura seletiva, que permite
pular os versículos sobre os fariseus.
Crises e bonanças internacionais
• As crises servem de
justificativa para governos amigos. Se uma administração aliada vai mal, a
culpa é do cenário externo. Inverte-se a lógica no caso dos adversários. Se a gestão
inimiga vai bem, as condições internacionais a favoreceram. Caso se saia mal, é
resultado exclusivo da incompetência de quem está no poder, que mente
descaradamente ao evocar os efeitos deletérios globais, mesmo quando se trata
da maior debacle planetária desde o início do século XX.
Coligações e
governabilidade
• Seu partido, no
poder ou quando em disputa eleitoral, consegue seduzir legendas de aluguel para
uma teia de alianças convenientes para garantir a governabilidade ou engrossar
o tempo no horário eleitoral gratuito? Parabéns, você é uma figura de aguda sensibilidade
política, negociador de fino trato. Seu adversário fez o mesmo? Denuncie a
falta de escrúpulos, a atroz barganha de princípios por conveniências, da
honradez pela ambição. Conte sempre com os amigos na mídia para corroborar a
sua tese. Aquele seu ex-ministro do PMDB que era honrado, mas mudou de lado,
será descrito como um homem desprezível.
Corrupção
• Prática entranhada
nos governos... dos outros. Infelizmente, a corrupção às vezes ganha fatos
comprovados e nomes ilustres de aliados seus. Mas não se preocupe. Vale o mesmo
do item Coligações. A mídia amiga estará a postos para jogar esse tipo de
acusação, obviamente gratuita e injusta, para debaixo do tapete. Há corruptos e
corruptos. Aqueles do partido adversário expõem uma maquinação coletiva, um
assalto aos cofres públicos, uma quadrilha organizada e perene, destino
manifesto da tal legenda e da administração partidária. Os seus representam
casos isolados, sem nenhuma relação com as práticas e princípios de sua
agremiação. Também vale dizer que a corrupção desenfreada dos adversários é um
mal tão grande que afeta até gente da sua base. É a tal falta de exemplo “de
cima”.
Corruptores
• Sem eles não existe
corrupção. Como alguns podem eventualmente (ou frequentemente) financiar
candidaturas amigas, melhor esquecer o assunto.
Delação premiada
• Ela só tem valor se
for vazada cirurgicamente para atingir os nossos concorrentes. Se, no meio do
lamaçal, surgir o nome de um aliado, diga que as revelações são açodadas e
precisam ser apuradas a fundo, doa a quem doer. Quanto ao fato de o vazamento
ser também um crime, de responsabilidade, inclusive, do ministro da Justiça,
caso envolva a Polícia Federal, bem… esqueça.
Dossiês
• Se a mídia está do
seu lado, fique tranquilo. O esforço de reportagem visará descobrir quem
produziu dossiês caluniosos contra você e os seus. Editoriais e colunistas vão
denunciar as “baixarias” de campanha (ver o próximo item). Não importa
se o dossiê não é um dossiê, mas denúncias comprovadas e comprováveis. Mas, se
a imprensa te enxergar como inimigo, se cuide. Tudo poderá ser usado contra
você, de declarações sem lastro de notórios bandidos a contas falsas no
exterior ou fichas “frias” na polícia.
Marqueteiros
Se um adversário sobe
nas pesquisas de intenção de voto, é hora de atribuir o preocupante sucesso à
ação mistificadora dos marqueteiros. Vale dizer, eles são capazes de botar em
pé um pacote vazio de ideias e até eventualmente eleger “um poste”. Nesse caso,
não convém lembrar que o seu candidato igualmente possui um exército de experts
em bruxarias político-eleitorais, pois isso comprometeria o argumento de que o
candidato, aquele que você e a imprensa do privilégio apoiam, apenas expõe suas
ideias reais, é de uma espontaneidade radical e nunca se deixaria manipular por
técnicas artificiais de persuasão ou pela maquiagem mercadológica. Os
adversários, estes sim, fazem o que for preciso para chegar ao poder, ou para
mantê-lo (verbete Alternância de Poder). Você e os seus nunca participam de uma
eleição para ganhar, mas em nome de um bem maior. Mensagens subliminares são a
maior especialidade dos inimigos. Uma doutora em semi-óptica, perdão,
semiótica, alerta a respeito das novas ciclovias, traçadas pelo prefeito
inimigo de São Paulo, para “o efeito das cores sobre o nosso sistema nervoso
central” e sugere que a cor escolhida “não passa de uma descarada propaganda
vermelha do PT”. Em todo o mundo, as faixas para bicicletas costumam ser
vermelhas, mas não importa.
Liberdade de
expressão
• É o direito
inapelável, intocável, irreversível dos meios de comunicação de exprimir o
pensamento único de seus proprietários, em consonância com seus interesses
pecuniários e sua pauta eleitoral. É facultado o direito de mentir e distorcer.
Em temporadas eleitorais, a toada de uma nota só torna-se uma obsessão, de
forma a impedir que vaze para o noticiário algum acorde dissonante por parte da
ralé das redações ou dos candidatos do outro lado. Quando os adversários
pretendem exercer, eles também, a liberdade de expressão, valem-se de um
eufemismo: quem responde a seus desmandos defende a censura.