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terça-feira, 12 de junho de 2012
O caso do empresário esquartejado
Reproduzimos
a íntegra de matéria sobre o caso do empresário esquartejado no Observatório da
Imprensa
12/06/2012 - Título original: O
caso do empresário esquartejado
Arsenal exclusivo das Forças Armadas virou
hobby de colecionador
Por Sylvia
Debossan Moretzsohn em 12/06/2012 na edição 698
A morte do empresário Mario Matsunaga foi,
ao que tudo indica, rapidamente esclarecida logo depois que sua mulher foi
presa e confessou a autoria do crime. Certo noticiário tenderá agora a revolver
os mistérios da alma humana ao explorar detalhes mórbidos do episódio: afinal
não é um crime qualquer, é um crime passional em que a mulher não apenas mata,
mas esquarteja o marido após aguardar o tempo suficiente para que os cortes não
provocassem tanta sangueira, enquanto sua filhinha de 1 ano dormia alheia a
tudo, e na manhã seguinte sai para se desvencilhar do corpo despedaçado
distribuído em três malas de viagem.
Há mais detalhes típicos de folhetins: a
mulher havia sido garota de programa e encontrara o futuro marido nesses
contatos via internet, era extremamente ciumenta e havia posto um detetive
atrás dele para comprovar um caso extraconjugal; a mãe está se tratando de um
câncer e não compreende o comportamento da filha.
Intimidades de família, segredos de
alcova, cenas exclusivas da traição, tudo isso garante audiência ao gosto do
voyeurismo do público e fornece farto material para os programas de sempre, com
o convite a “especialistas” também sempre dispostos a opinar sobre motivações e
mesmo sobre a maneira pela qual as “mentes assassinas”, que rendem óbvios best-sellers, costumam agir.
Mas isso é o que menos importa.
A descoberta do arsenal
Durante a reconstituição do crime, uma
descoberta particularmente chocante foi noticiada como se fosse a coisa mais
banal do mundo: o arsenal encontrado pela polícia no apartamento do empresário.
Trinta armas, entre as quais fuzis e submetralhadoras, e caixas de munição com
cerca de 10 mil projéteis.
Não se informou quanto tempo a polícia
teve entre esse achado e a investigação que permitiria ao delegado afirmar,
categoricamente, que as armas estavam “todas legalizadas, todas regulamentadas
e todas autorizadas para uso de colecionador”. O fato mereceu apenas registro
nos jornais.
Colecionadores têm entre si esse traço
comum da obsessão por determinado objeto, conforme não apenas o gosto mas a
condição financeira: podem ser latinhas ou rótulos de cerveja, camisas de times
de futebol, soldadinhos de chumbo, selos, livros raros, obras de arte. Ou mesmo
armas, mas nesse caso imaginamos sempre – talvez ingenuamente – o fascínio por
exemplares antigos, que marcaram época, desde garruchas e mosquetões até
modelos utilizados em guerras, mas já fora de circulação. Tudo para ser
classificado e guardado com apuro em armários envidraçados, para exibir
orgulhosamente aos amigos.
Coisa de colecionador?
De repente, somos surpreendidos com a
descoberta do arsenal – parte do qual de “uso restrito das Forças Armadas”,
como noticiou a Folha de
S.Paulo na sexta-feira (8/6)
– e a justificativa do delegado. A quem aparentemente estranhou, ele respondeu:
“Ele [o empresário morto] era atirador, ele gostava. É um hobby. Se você pegar, outros
colecionadores devem ter muito mais que isso”.
Que uso um colecionador de armas está
autorizado a fazer de sua coleção? Onde se pode imaginar que um atirador vá
praticar suas habilidades com uma submetralhadora? Colecionadores podem
colecionar armas de uso exclusivo das Forças Armadas? Podem colecionar também
munição? Dez mil projéteis não serão um número excessivo, em qualquer caso?
Salvo engano, a única reportagem que se
deteve minimamente sobre essa história foi a do Jornal Nacionalde sábado
(9/6), ainda assim centrada no alerta para o número excessivo de armas – quase
155 mil – legalmente nas mãos de “colecionadores, atiradores esportivos ou
caçadores”. Nenhum questionamento sobre o que faria este empresário com tão
variado material em casa.
Perguntas que faltaram
Na edição de sexta-feira (8), a Folha de S.Paulo reproduziu reportagem do Agora informando que o empresário havia
transformado um dos banheiros do imóvel em “cofre” onde estocava o arsenal. Ao
mesmo tempo, dizia que “parte das carabinas, fuzis, submetralhadoras e outras
pistolas estava espalhada por outros cômodos do apartamento de quase 300 m² do casal”, porque o
empresário “temia um arrastão no prédio onde morava”.
Portanto, as armas seriam utilizadas em
caso de assalto. Por isso, aliás, ele e a mulher haviam feito curso de tiro,
seriam exímios atiradores.
Podemos imaginar então a cena de um ataque
ao apartamento duplex naquele belo condomínio vertical paulistano e o casal de
colecionadores se movimentando cinematograficamente de um lado para outro,
manuseando alternadamente as 30 armas e despejando seus 10 mil projéteis contra
os malfeitores, no melhor estilo dos filmes de gângster. Dois contra uma cidade
inteira?
Não caberia perguntar, afinal, o que tanto
temia o empresário? Que interesses, atividades e relações poderia ter além de
seu trabalho como diretor-executivo de uma fábrica de alimentos, aliás
negociada com uma poderosa multinacional americana justamente na semana em que
ele, já morto, era dado como desaparecido?
O Fantástico de domingo (10/6) fez ampla reportagem
centrada na mulher que confessou o crime, e tratou também dos hábitos do casal.
Ficamos sabendo que o empresário também era amante de vinhos, tinha essa outra
“coleção” e pretendia investir no negócio.
Sobre armas, apenas o registro já
conhecido, além da surpresa de uma das empregadas, entrevistada sem ser
identificada, diante da descoberta de uma pálida amostra do que havia no
apartamento, durante uma limpeza.
Contra a ignorância
Jornalismo, por definição, é feito para
ignorantes. Não se trata, como pode parecer a princípio, de uma frase de
efeito: ignoramos os fatos que ocorrem fora de nosso círculo de relações, ainda
que este círculo tenha sido ampliado com a disseminação do acesso à tecnologia
digital. Por isso precisamos do jornalismo: para que nos dê informação
confiável.
Por isso repórteres precisam se colocar no
lugar do público ignorante e fazer as perguntas que possam esclarecê-lo, e não
dar de barato que tudo se resolve com as declarações das fontes, sobretudo
quando elas são evidentemente insuficientes para a compreensão dos fatos.
[Sylvia Debossan Moretzsohn é
jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora dePensando
contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]
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